A história do poder institucional no Brasil tem uma raiz colonial-republicana-neoliberal. O desenvolvimento do poder burguês imprimiu na sociedade brasileira dois conceitos chaves com seus respectivos conteúdos de classe:
1. A concepção de cidadania baseada em deveres, com direitos atrelados a eles. A premissa básica da cidadania capitalista clássica é o direito de consumir e o dever civil obrigatório de arcar com o pagamento da dívida.
2. A consolidação no imaginário coletivo brasileiro de um Estado de direito aparentemente democrático, próximo dos anseios de toda sociedade.
Com base nesta construção de cidadania e de Estado “democrático de direito”, a burguesia se perpetua no poder e nega a possibilidade de levante da outra classe. Institui diversos mecanismos de dominação, de consolidação de uma forma única de agir e pensar e cria formas reais de opressão e exploração da classe trabalhadora.
Os modelos brasileiros de escola, de saúde, de Estado de direito e de desenvolvimento são cópias originais de processos burgueses aparentemente bem sucedidos em outros territórios conhecidos como desenvolvidos.
Em pleno período eleitoral de continuidade do modo burguês de operar as regras do jogo na história brasileira, as perguntas chaves para a classe trabalhadora são:
O que é o poder popular?
O poder popular é um processo de construção social da classe para si. É a consolidação de um poder com as formas e os conteúdos da classe trabalhadora.
É o poder que além de emanar da classe, pulsa e se revigora desde seu próprio protagonismo político enquanto sujeitos ativos não mais sujeitados à lógica operante do capital.
O poder popular é o poder definido, disputado, consolidado, mantido e desenvolvido pela classe trabalhadora ao longo de seu caminhar histórico, tanto no poder institucional, quanto para além dele.
Quais são as bases que sustentam este poder?
Organização, formação e luta de classes.
Todo poder, seja ele burguês ou popular, necessita compreender tanto a estrutura de funcionamento que vigora sob as bases de dominação do inimigo, quanto a que pretende ser posta em movimento pela própria classe.
A formação é a base de consolidação de uma teoria da ação revolucionária. Base esta que coloca em movimento permanente o que se tem e o que deve ser superado para se concretizar o que se quer.
A formação evidencia que a luta e a organização devem servir de elementos constitutivos no processo de compreensão da realidade a ser transformada.
A luta de classes nos forma e nos forja a repensarmos a concepção de sujeito emanada do poder burguês.
Mas esta luta, sem o referencial de classe, sem os conteúdos chaves de explicação oriundos dos próprios sujeitos da classe, não dá o salto qualitativo necessário que é o de superar o vivido a partir de outro projeto próprio da classe.
A organização, por sua vez, requer tanto no reivindicativo, quanto no revolucionário, a disciplina e o envolvimento participativo com tarefas bem distribuídas.
Organizar as pautas reivindicativas, consolidar os projetos revolucionários, articular e dar unidade ao projeto são os elementos constitutivos da organização popular manifesta na luta de classes.
Organizar significa constituir um partido que estabeleça na estratégia e na tática, os elementos chaves da consolidação do poder popular da classe trabalhadora.
Quais os desafios do poder popular?
Primeiro: organização popular da classe frente a um mundo do trabalho fragmentado, heterogêneo e diversificado.
Organização popular em que o resgate da memória e da história das lutas dos trabalhadores seja tomado como essencial no que-fazer da classe para si.
Parte expressiva da classe trabalhadora brasileira e mundial está imersa no mundo da sobrevivência cada vez mais desumano no tempo que requer para se manter vivo, a partir de uma lógica de trabalhadores livres escravos de um trabalho mal remunerado.
Com base neste curto espaço de tempo fora do mundo do trabalho, que deverá ser compartilhado entre família, tempo livre, estudo e outros aspectos, é central no processo de reconhecimento dos sujeitos políticos, a decisão de dar prioridade à militância nas causas da classe.
Reconhecer-se como classe não é uma opção individual feita a partir da seleção de temas comuns. Reconhecer-se como classe trabalhadora é fruto de uma formação coletiva em que as lutas tornam-se comuns, ainda em meio a pautas diversas.
Segundo: compreender a atual forma-conteúdo da classe trabalhadora nos seus respectivos territórios e definir uma atuação concreta dos sujeitos a partir do cotidiano diverso da classe.
Isto requer a retomada da educação popular como elemento constitutivo dos encontros nos territórios e nos espaços de organização da classe trabalhadora.
A educação popular nos permite ressignificar os encontros na produção cotidiana de um processo a ser protagonizado pela classe com compreensão dos limites e possibilidades frutos do nosso tempo histórico.
Terceiro: consolidação de um projeto comum – que dispute as eleições, mas que vá além – nos elementos estratégicos cotidianos da classe em que estejam pautados os modelos de desenvolvimento, de educação, de agricultura, de saúde e de garantia do público, com redução gradativa ou radical dos espaços privados no que é estratégico para a classe.
Projeto em que os trabalhadores se reconheçam não somente no mundo das necessidades, mas no mundo da produção do que realmente desejam implementar, executar, avaliar, avançar.
Quarto: materialização do poder popular nos territórios, nos espaços de ocupação da classe, na produção da vida, em que a propriedade privada dos fatores e meios de produção seja substituída pela propriedade comum no desenvolvimento sustentável do humano não mercantilizado e da vida regida por ele.
Quinto: realização de outro conceito de vida, de sociedade, de relação internacional e integração centrada nas reais necessidades instituídas pelos trabalhadores do mundo, como protagonistas políticos do processo de desenvolvimento que realizam e que lhes pertence.
Estes são apenas alguns dos desafios que integram o processo de consolidação do poder popular que, além de disputar o eleitoral, criam as bases de manutenção para a execução e perpetuação de seu poder de classe.
Estes elementos integrados a outros tantos, têm que permitir que pelas veias abertas da América Latina circulem as produções provenientes de outro processo coletivo de desenvolvimento.
Processo em que o sangue e o suor da classe trabalhadora latina consolidem a construção coletiva e comum de uma riqueza cujo valor de uso se sobreponha ao valor mercantil impresso na história hegemônica de manutenção do projeto burguês no continente
Roberta Traspadini
Economista, educadora popular
integrante da Consulta Popular/ES.
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