O GOVERNO LULA OU A QUEBRA DO CONSENSO NEOLIBERAL
A eleição de Lula é produto do fracasso e da rejeição do governo FHC, da resistência dos movimentos populares e da capacidade de Lula de capitalizar esses fatores para se eleger finalmente presidente. Isso não se dá no bojo de um grande ciclo de mobilizações populares. Os movimentos populares, duramente golpeados pelas políticas neoliberais – entre elas o desemprego e a precarização laboral – pelo ataques ideológicos, políticos e repressivos contra as mobilizações de massa e as suas organizações, pelas viradas ideológicas na sociedade brasileira, haviam passado a uma situação de relativo refluxo.
Apesar de tudo isso, Lula não se havia transformado em favorito para ganhar as eleições, sendo superado, sucessivamente por Roseana Sarney e por Ciro Gomes, até que a crise da candidatura deste deixou em aberto a herança de votos, disputada entre Lula e Serra. Foi nesse momento que a Carta aos brasileiros – em que se tentava debelar o ataque especulativo contra o Brasil, feito pelos capitais especulativos – e o “Lulinha, paz e amor”, conseguiram fazer com que Lula passasse do patamar histórico de votos do PT – pouco mais de 30%,- para a cifra que lhe permitiu vencer.
Foi assim uma vitória da rejeição do governo FHC, mas que recebeu como herança não apenas a dura situação econômica, mas também consensos nacionais implantados por anos de neoliberalismo. Sua incorporação, com a Carta aos brasileiros, foi herança desse consenso.
O governo Lula manteve elementos das políticas do governo anterior e rejeitou a outras, configurando um quadro contraditório. Na sua primeira fase, primaram os elementos de continuidade, mantendo-se um duro ajuste fiscal – de que os superávits primários e a independência de fato do Banco Central são expressões. O governo assumiu formas contraditórias, com políticas sociais e política externa claramente inovadoras, mas com política econômico-financeira e política agrícola tradicional.
O campo popular elegia um governo diretamente vinculado a ele, porém refletindo as contradições desse mesmo governo e do período político em que esse governo foi eleito. Dois momentos foram traumáticos para as relações do governo com sua base popular de apoio: o primeiro, a reforma da previdência, praticamente a primeira iniciativa política do governo, que se chocava diretamente com as posições do movimento social organizado. Isso se dava no marco do ajuste fiscal que primava na primeira fase do governo, em que os contingenciamentos de recursos freavam a realização das políticas sociais em favor da estabilidade monetária, refletida nos superávits primários.
O segundo foi a crise de 2005, em que sob acusações de uso de recursos para compra do apoio de aliados, o governo chegou a ter risco de sofrer acusação de impeachment e assim terminar precocemente a primeira experiência de governo popular em mais de quatro décadas, sob acusações de corrupção, sem ter saído do modelo econômico herdado.
O governo foi resgatado pelas políticas sociais e pelo apoio popular que ela lhe propiciou. A resultante, que permitiu ao governo não apenas superar a crise, como conseguir a reeleição em 2006 e chegar ao seu sétimo ano de governo – quando FHC tinha 18% de apoio – com apoio superior a 80% e rejeição de 5%, apesar de ter praticamente toda a imprensa feroz e sistematicamente contra.
Como resultante, o governo Lula representa uma nova expressão do campo popular, que teve nos governos de Getúlio e de Jango, seus antecedentes mais próximos. Governos de coalizão de classes, pluriclassistas, que assumem projetos de unidade e desenvolvimento nacional, com forte peso das políticas sociais. Da mesma forma que os governos anteriores, cruzado por uma série de contradições, agora produto mais direto da era da globalização neoliberal.
O povo brasileiro mudou, o campo popular também, o próprio Brasil é outro. Mas há uma linha de continuidade que permite dizer que a luta de hoje é, no essencial, a mesma de há oito décadas, quando o Brasil contemporâneo começou a ser construído.
Emir Sader
publicado no site “Carta Maior”
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