Findo o Carnaval, na Quarta-Feira de Cinzas, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao lado de outras instituições religiosas, lançou a Campanha da Fraternidade de 2010, que defende que não se pode servir a dois senhores: ou a Deus ou ao dinheiro. Voltamos à Idade Média. É simplesmente inacreditável que em pleno século XXI a Igreja Católica lidere um movimento de 40 dias que afirme que ganhar dinheiro é pecado. Um país não escolhe a religião que deu forma à sua matriz cultural, isso apenas acontece de acordo com o acaso. Por acaso o Brasil foi formatado pelo catolicismo. Por acaso os Estados Unidos foram moldados pelo protestantismo. Aliás, justamente por causa disso uma campanha como a feita pela CNBB no Brasil seria inconcebível naquele país.
Alguns afirmam que o enriquecimento é pecaminoso. Quem visitou a Universidade de Chicago teve a chance de ver na sua igreja principal o reconhecimento público às doações, em dinheiro, feitas pela família Rockefeller à universidade. A decisão de colocar a placa de agradecimento foi tomada por pessoas que certamente nunca consideraram pecaminoso ser rico. Para os padres brasileiros, a família Rockefeller seria execrada - como diz a "Bíblia", é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.
Na teologia do luteranismo, e também do congregacionismo cristão que se tornou a denominação religiosa preponderante nos Estados Unidos, educar a população é fator-chave para que ela possa escapar do pecado. Nessa visão de mundo, as pessoas ignorantes, analfabetas e incapazes de ler a "Bíblia" são mais suscetíveis a pecar do que as que podem ler a palavra de Deus. A educação é um meio para escapar do demônio, para não cair nas tentações de satanás.
Lutero escreveu um sermão extremamente conhecido, intitulado "Uma prédica para mandar as crianças para a escola", no qual afirma que, se não fosse pastor, seria professor, porque nada há de mais importante do que ensinar as crianças a ler e escrever. Para que tenhamos noção do peso da afirmação de Lutero é preciso ter em mente que em sua época praticamente 99% da população da Prússia era analfabeta.
Um dos motivos de sucesso do cristianismo se deveu à sua simplicidade. Adotar o judaísmo como religião, na época de Cristo e mesmo hoje, implicava seguir 612 regras. A circuncisão dos meninos é apenas uma de tais regras. Uma das grandes inovações do cristianismo foi eliminar em uma só tacada todas as 612 regras e colocar em seu lugar apenas uma: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Paulo e Tiago, irmão de Cristo, tinham visões opostas acerca da circuncisão. Tiago era a favor e Paulo contra. Venceu, como qualquer homem cristão pode constatar ao ir ao banheiro, Paulo.
O cristianismo atendeu a uma demanda social pela simplificação das regras e pela diminuição de seu número. Nenhuma religião floresce no vazio. É possível que essa simplificação tenha sito um fator fundamental na grande velocidade de propagação da nova religião.
O luteranismo, o calvinismo e todas as demais versões do protestantismo também vieram para atender a uma demanda da sociedade, a demanda por mais igualdade. A religião católica havia se tornado a principal aliada dos nobres e da coroa nos séculos que antecederam à Reforma protestante.
Quem admira Paris, Bruxelas, Madri e outras esplendorosas capitais europeias deve saber que toda a riqueza dessas cidades não veio do comércio, mas do governo e dos tributos que ele extraía de seus súditos. Não são cidades industriais, mas capitais estatais e religiosas. A riqueza de igrejas como a Notre Dame de Paris deve muito à aliança entre os padres e a nobreza, entre a coroa e a Igreja Católica. A Reforma foi uma crítica a tudo isso. Ela não se limitou ao famoso ataque à compra das indulgências.
Nesse sentido, cumpre comparar a arquitetura das igrejas protestantes com a das católicas. Dificilmente uma igreja protestante se torna ponto turístico. A razão é simples: são prédios austeros, a maioria completamente pintados de branco, sem obras de arte de artistas renomados, sem prata ou ouro. Os prédios das igrejas protestantes são austeros, os das igrejas católicas, suntuosos, por isso se tornaram pontos turísticos nas capitais europeias.
Luteranismo e calvinismo atendiam, assim, à demanda por mais igualdade. Porém, havia outras maneiras de atender a essa nova demanda social. Uma delas era por meio da popularização da educação. Foi assim que o sistema educacional prussiano se formou, baseado na igreja luterana. Onde havia uma igreja, havia uma escola para alfabetizar as crianças. Nunca ouvimos falar que em cada igreja católica funcionava uma escola. São tradições muito diferentes.
Outra forma de lidar com a busca por mais igualdade é por meio da simplificação do rito religioso, por meio da tradução da "Bíblia" para as línguas nacionais. Aliás, a primeira "Bíblia" não escrita em latim foi a tradução de Lutero para a língua alemã: todos tem que ter acesso ao que está escrito na "Bíblia", não apenas os padres e monges. Outra forma, ainda, de democratizar a religião foi por meio da facilitação do acesso ao ofício de pastor. Para ser padre é preciso renunciar aos prazeres da carne, para ser pastor isso não é preciso.
O nosso catolicismo se encaixa perfeitamente em nossa desigualdade social. Não deve haver dúvidas de que ele ajudou a engendrá-la. A teologia da libertação se notabilizou pela opção preferencial pelos pobres. Qual de nós não aprendeu que ser rico em uma sociedade desigual é complicado? Deve-se sentir culpa. Quem é rico deve se sentir culpado pela situação dos pobres. Os pobres sofrem muito na vida; por isso, depois da morte, eles serão julgados por Deus com muita compaixão. O oposto se aplica aos ricos. Eles provavelmente são ricos porque exploraram o povo. Só existe riqueza porque há pobres. Assim, Deus não será generoso com os ricos no momento de seu julgamento.
Há, obviamente, nessa teologia que ilumina (?) a Campanha da Fraternidade de 2010, um viés favorável aos pobres e contrário aos ricos. Segundo ela, mantidas constantes todas as demais variáveis, haverá proporcionalmente mais pobres do que ricos sentados ao lado direito de Deus.
O luteranismo contribuiu para aumentar a escolaridade média da população. O mesmo vale para o calvinismo e as demais versões da religião protestantes. Pessoas mais educadas são mais produtivas no trabalho. Isso ocorreu na Prússia, Suíça, Holanda e Grã-Bretanha. Justamente os países que acabaram largando na frente no desenvolvimento econômico europeu. A Espanha e Portugal católicas ficaram para trás. Sob o catolicismo o esforço educacional é menor. População menos educada resulta em economia menos produtiva. Economia menos produtiva é sinônimo de pobreza. E a defesa da pobreza e a condenação do dinheiro são sinônimo de Campanha da Fraternidade no Brasil do século XXI.
Nesse aspecto, a Igreja Católica é coerente, não valoriza a educação e valoriza a pobreza. Antes que pensem que me esqueci dos jesuítas, afirmo: não me esqueci não. No laboratório de iniciativas para deter a reforma os jesuítas triunfaram. Eles se tornaram os professores da nobreza, os professores da elite dirigente. Luteranos fundam escolas primárias e ensinam todas as crianças a ler e escrever. Jesuítas fundam universidades, os colégios jesuítas voltados para a elite, preferencialmente localizados próximos à avenida Paulista ou na zona sul do Rio. O protestantismo educa o povo, o catolicismo educa a elite.
Diante da pobreza da população brasileira a Campanha da Fraternidade da CNBB é, na melhor das hipóteses, extremamente infeliz e é, falando francamente, um retrocesso medieval. É bem possível que aqueles que tomaram a decisão sobre essa campanha ignorem completamente o nível escolar médio da população e a renda média dos brasileiros. Eles também não sabem que a maioria dos brasileiros não tem carro, gostaria de viajar de avião, gostaria de se mudar de casa morando em um bairro melhor e em uma casa maior. É difícil dizer que isso vai contra Deus. Ganhar dinheiro tem como finalidade levar as pessoas a desfrutar dos confortos da vida. Isso é pecaminoso?
Para a CNBB, quanto mais se consome, mais se peca. É injusto querer isso de nosso povo. Somente agora muitos tiveram acesso a uma conta bancária, foram capazes de comprar um computador para os filhos ou reformaram a casa.
Cobrar juros de dinheiro emprestado configura-se pecado da usura. É possível que depois desta Campanha da Fraternidade alguns católicos sejam excomungados por causa disso. Não surpreende que a Igreja Católica venha perdendo seguidores no Brasil. Os brasileiros querem melhorar de vida e é impossível fazer isso se acreditarem que ganhar dinheiro é pecado.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).
E-mail: Alberto.almeida@institutoanalise.com - www.twitter.com/albertocalmeida
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