Sexta-feira, dia 8 de março de 2002, dia internacional da mulher, morreu a mais polêmica escritora brasileira: Cassandra Rios.
Ela publicou seu primeiro livro aos 16 anos, com a ajuda de sua própria mãe. Um detalhe: quando morreu, a mãe jamais havia lido um livro da filha, a pedido desta. O motivo: os livros eram muito picantes, a maior parte deles repleto de lesbianismo.
Filha de espanhóis, nascida e criada no bairro paulistano de Perdizes, Cassandra Rios se chamava, na verdade, Odete. Assinava seus livros sob pseudônimo por motivos óbvios, que o tempo comprovou: Cassandra teve, ao longo de sua carreira, 36 dos seus livros proibidos pela censura do regime militar.
Não bastou ser a maior vendedora de livros do país, com recordes de 300.000 cópias vendidas, número surpreendente para os anos 60: Cassandra foi perseguida pela esquerda e pela direita, tachada de pervertida pelos defensores da moral e acusada de conservadorismo pelos que lutavam contra a ditadura.
Primeira escritora a desfrutar de uma popularidade que a fazia convidada de todos programas de tv, comparecia também de smoking em festas, recebida pelos governadores da época. Foi pop e cult ao mesmo tempo. Depois de chamar a atenção de todo o país durante os anos 60 e 70, resolveu retirar-se de cena. Tornou-se messiânica e conseguiu reencontrar Odete, sem matar Cassandra.
Em homenagem a esta figura polêmica, nada melhor que ouvir Cassandra nas palavras da própria Odete. Os trechos abaixo foram tirados de seu último livro, “Flores e Cassis”, uma coleção de textos de gaveta, um verdadeiro apanhado auto-biográfico, com recordações de sua trajetória:
“Ponho-me alerta contra meus perseguidores, pois já lhes sinto o mal cheiro ou mau cheiro? Mau-cheiro! De todo modo é coisa ruim de se respirar! Despertam feras nauseabundas com suas afiadas presas preparadas, farejando minha inesperada sutil chegada. Sorrateiras rastejam, armando o bote para morderem-me pelos calcanhares, pois são tão baixas, andam tão encolhidas, que outro ponto não alcançariam, senão o vulnerável secreto calcanhar de Aquiles que pensam eu tenha!”
“Me batizaram de Demônio das Letras, Papisa do Homossexualismo, uma dama de capa e espada, seduzindo e corrompendo. Vestiram-se e revestiram-se como decorosos santos, e no entanto, tudo ao redor dessa gente fede. Fede! Os metidos a sábios da Literatura! Mais aparecem eles do que suas obras!”
“Minha mãe... vestia-me de anjinho, com uma roupinha azul muito linda, quase perfeitas asas, na cabeça uma coroinha de Cristo... As asas, de lindas peninhas azuis, de seda, pesavam bastante e às vezes os seus ganchos prendedores me arranhavam as costas, o que me fazia pensar - puxa, como os anjos sofrem! Comentei isso com minha mãe e no ano seguinte, não sei como ela arranjou isso, as asas não pesaram tanto e não me arranharam as costas. Ou seria que eu crescera, e ficando mais forte pudera suportar mais o peso delas?”
“Quis mostrar como se divide e identifica-se, manifesta-se, compactua e ataca, silencia e condena levianamente a Homossexualidade , sem entenderem do assunto coisa alguma, pois não há o que entender, mas que respeitar, aceitar e admitir que todo ser humano tem o Direito de Viver a própria Vida, do jeito e objetivo para os quais nasceu.”
“Até bofetada de delegado, na cara, levei. O que mais temiam? Já não estava eu proibida? Hoje entendo. Ruminavam que eu precisava ser algemada, amordaçada, enxovalhada de todas as humilhações, desacreditada na minha conduta moral, para denegrirem meu talento e consagrarem suas aleivosas pessoas! Verdade que, na época, assim diziam, só eu vendia! O público consumidor via, só nas páginas dos meus livros, gente com as quais hoje cruzam nas ruas, livres, sem ter que disfarçar e pagar pelo que nasceram.”
“Eu estava cutucando a onça com vara curta, diziam-me, provocando e convocando, criando uma situação que detonava manifestos e atrevimentos de certas personas non gratas pela sociedade. Os homossexuais! Era certo que eles me adoravam, eu os endeusava! Tacharam-me até, naquela época, de Rainha das Bichas!”
“Um outro delegado picou diante dos meus olhos Nicoleta Ninfeta (outro best-seller de Cassandra) e ameaçou ´é isso que vamos fazer com todos os seus livros e queima-los em praça pública!`. Um arrepio percorreu-me. Seria eu a reencarnação de Safo, a grande poetisa de Lesbos, cujas obras o Papa Gregório VII, cheio de ódio mandou queimar, seus riquíssimos versos, numa fogueira, em praça pública, epitalâmios, himeneus, poesias, excomungando a mais célebre poetisa do mundo”.
“Depois de tudo isso, perguntaram-se por que parei! Eu não parei! Eu apenas estava esperando, sentada em meu jardim, se é que são capazes de entender meus simbolismos, aliás, todos que quiserem os entenderão sem esforço algum. E fiquei, esperando e esperando. Passaram dez, quinze, mais de vinte anos! Eu estava sentada no jardim do meu mundo interior, aguardando que tudo voltasse ao normal, que baixasse a febre, que do mesmo jeito que surgiu fosse embora o enlameante vendaval. Que ocupasse a liderança em vendas, polêmica, fama, um novo escritor. Coitado! Por certo, atrás dele, os abutres, meus perseguidores, esquecendo-se de mim avançariam...”
“Como mulher, eu sou, na definição exata de como me sinto, uma menina medrosa que se escondeu atrás de um pseudônimo, que se assustava e tinha medo de tudo, e hoje não tem medo de nada! ... Adormeci num sonho, enveredando por pesadelos, para viver escudada na fantasia de ser Cassandra! Despertei dos pesadelos e livrei-me do sonhos de ser Cassandra para a realidade de Odete! A verdadeira que sou!”.
“Anjos não somem - revezam-se!”
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