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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Continência urinária

O carnaval carioca se reinventa a cada ano. Na Sapucaí, o desfile das escolas de samba do Grupo Especial nunca foi tão monumental e inovador em termos tecnológicos. Pelas ruas, centenas de milhares de foliões recriaram o carnaval de rua, por muito tempo esquecido e abafado pela crescente industrialização das escolas de samba. Vimos um espetáculo curioso em sua frieza no Sambódromo, e a alegria dos blocos pelas ruas sem controle. Dentro dos muros do Sambódromo, ocorreu a evolução incessante, o exibicionismo das máquinas que finalmente ofuscaram as mulheres sensuais que faziam da nudez a maior joia da folia. Fora deles, dominou a barbárie da mistura dos ritmos e dos comportamentos erráticos. O carnavalesco Joãosinho Trinta apareceu de cadeira de rodas no Sambódromo, com uma atitude humilde. Mas sua pose deveria ser triunfal, porque ele profetizou vinte anos atrás que o carnaval na avenida viraria um superespetáculo, uma espécie de ópera, com atores, coros, iluminação e sambas-enredos épicos, dirigida por carnavalescos cada vez mais intelectualizados. E foi o que aconteceu. O carnaval foi evoluindo de tal forma que neste ano se deu a virada: a profissionalização se fez presente e expulsou qualquer intruso “espontâneo”. Não existe mais espontaneidade no caranval. A esperança de liberdade extravasou para os blocos... em jorros de xixi. A gente poderia racionalizar os eventos desta forma: a ordem e o controle da festa organizada versus as manifestações de liberdade dos blocos. E é aqui que entra a urina. As autoridades tentaram “moralizar” os desfiles dos blocos, com o programa Choque de Ordem (mais conhecido como “fora, mijão”), cujo objetivo era prender em flagrantes quem urina pelos cantos da cidade. A Riotur espalhou 4 mil banheiros químicos – o que só fez piorar a situação, porque os foliões emporcalharam as casinhas a ponto de a tornarem inúteis. As autoridades se renderam ao óbvio: o xixi ainda é incontrolável, apesar dos esforços dos inimigos da falta de decoro e do comportamento escandaloso. Enquanto carregavam duzentos mal-educados à delegacia, os policiais assistiram à inovação total dos hábitos do público, pois, pela primeira vez, mulheres foram detidas porque se aliviaram na rua. É o feminismo em ação. Até este carnaval, só os homens podiam dar suas mijadinhas estratégicas. O ato se revstia de nobreza folclórica, uma nobreza que empestava o ar da cidade, e reafirmava o triunfo do macho. Agora as mulheres se acham com os mesmos direitos. Quem poderá detê-las? Minha tese é de que nenhum poder público poderá impedir o xixi. Tentar impor o regime de continência urinária só faz rir. Até porque é um ato de força antiecológico. A vontade de fazer xixi é ancestral, é mais antiga e proverbial que o próprio samba. A evolução urbana – sempre péssima no quesito harmonia – fez com que as ruas fossem cobertas de asfalto e, com isso, a vazão da água foi impedida, e começaram as enchentes. A população cresceu ao mesmo tempo que o asfaltamento dos logradouros públicos, e os hábitos aos poucos se liberalizaram. É preciso lembrar que antigamente mesmo as grandes cidades possuíam áreas verdes que absorviam todo tipo de dejeto. Sempre houve incontinência urinária no carnaval carioca, e o mau-cheiro das ruas vem de longa data. E isso acontece em qualquer evento de massa brasileiro – e provavelmente mundial. É o excremento ancestral a que se referia Nelson Rodrigues. A satisfação de necessidades fisiológicas sambava junto com a alegria de pôr o mundo de cabeça para baixo do carnaval. Os mecanismos de controle já conseguiram domesticar as escolas de samba cariocas e até a colocar cordões de isolamento em alguns blocos. Mas ainda não há poder suficiente para impedir que alguém sinta a urgência na natureza. Esta é a alma da festa. A incontinência urinária é a derradeira manifestação de liberdade do carnaval.
Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV

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