Uma vez ouvi alguém dizer: "O melhor amor é aquele que provoca em nós os nossos melhores sentimentos". Isto já tem mais de trinta anos, mas a frase ficou grudadinha na memória.
Retomo-a agora. É uma frase intrigante. Primeiro porque instila a ideia de que existe um "melhor amor". Se assim é, então deve existir também um "pior amor". Isto desestabiliza a idéia de que o amor é sempre uma coisa una e indivisível, que é em si sempre algo sublime, fora de nós, e que certos amantes é que não sabem como lidar com ele.
Ocorreu-me de novo aquela frase, porque alguém (há sempre alguém nos dando frases de presente), numa conversa banal, disse que fulano era especialista em murchar mulheres. Havia casado umas três vezes, e o que eram namoradas viçosas e apetecíveis transformaram-se em cinzas e apagadas matronas olhando a vida como um trem que se afastasse deixando-as murchas na estação.
Tem gente, portanto, que tem DNA de sanguessuga. Crava o dente na alma do outro e a esvazia. No entanto, a convivência amorosa deveria trazer vida, alegria, comu-nicabilidade, enfim, despertar em cada um o que cada um de melhor tem.
Em Belo Horizonte houve uma miss Brasil esfuziantemente linda, que casou com um empresário e obnu-bilou. É essa a palavra que me ocorre, e - como dizia o mestre Aurélio - a gente tem que dar oportunidade às palavras. A moça enevoou-se, apagou-se, sumiu do mapa, sequestrada na tristeza. Obnubilou-se.
Alguém vai dizer: "Isto também ocorre do lado feminino". E eu não sei? Já não vimos aquele filme com a Marlene Dietrich, O anjo azul em que a "mulher fatal", como uma aranha no cio, uma gafanhota perversa, vai destruindo o indefeso e apaixonado velho professor?
Picasso foi um grande, imenso exemplo de destruidor de mulheres. Algumas se matavam, outras iam enlouquecendo. Isto pode ser revisto naquele filme tirado do livro que uma de suas ex-mulheres escreveu. Aliás, se acharem suspeitos os depoimentos expressos pela vida de suas sete esposas oficiais, basta considerar a frase que Paul Éluard - poeta francês contemporâneo do pintor - certa vez disse depois de fazer um exame da caligrafia daquele minotauro amoroso: "Picasso ama intensamente, mas ele destrói o que ama".
Portanto, se há um "melhor amor" e um "pior amor", há amor que mata e amor que vivifica. Por isto, alguém pode indagar: "Por que há gente que fica presa ao 'pior amor'? Por que sofre insónias? Por que fica grudada no telefone que não toca? Por que continua dando presentes e recebendo rejeição de volta? Por que tolera certas humilhações públicas e íntimas?"
É que nem sempre se pode sair de um pântano, de uma areia movediça, sem agarrar-se a um galho, corda ou outro tipo de socorro. E as neuroses são como o cigarro. O fumante, mesmo sabendo que aquele vício mata, nem sempre consegue dele se libertar. E assim como quem já deixou a bebida sabe que não se deve tomar um trago nem por brincadeira, quem já sofreu burramente por causa de um amor ruim deve precaver-se.
O melhor amor é aquele que desperta em nós os nos os melhores sentimentos. Aí, então, nossa pele remoça, os olhos brilham e somos capazes de atravessar os anos numa fecundante aura.
(Affonso Romano de Sant’Anna - crônicas)
Nenhum comentário:
Postar um comentário