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sábado, 12 de dezembro de 2009

CLAMOR DO SEXO

Outro dia eu estava num show do Nando Reis, no Rio de Janeiro, e me percebi completamente hipnotizado por uma das cantoras da banda. Ela era baixinha, tinha pernas grossas e dançava como se o mundo fosse acabar. Assim que bati os olhos nela saí da mesa e arrumei um lugar embaixo do palco, em pé. A música rolava, as pessoas pulavam, mas eu não via mais nada que não fossem os cabelos crespos e o rosto redondo da moça. Uma viagem. A perda parcial dos sentidos durou vários minutos, mas em algum momento a ficha caiu: eu estava bêbado, os amigos já tinham ido embora e a situação era ridícula. Tinha chegado a hora (passava da hora, aliás) de pegar minhas coisas e bater em retirada. Foi o que eu fiz. Conto essa história irrelevante por uma única razão: ela fala sobre desejo. Ela lembra a existência de uma força antiga e poderosa com a qual nós todos, homens e mulheres, temos de lidar diariamente. Virar as costas para uma artista de minissaia que rebola no palco exige apenas bom senso. Em outras situações, domar o próprio desejo pode ser mais difícil. Todos sabem, por experiência própria, que o sexo está presente em várias dimensões da nossa vida. Ele se infiltra nas relações de trabalho, constrói e destrói amizades, alimenta nossa sociabilidade e permeia - olha o Nelson Rodrigues - até as relações de família: quem já não teve a cunhada mais linda do mundo? É difícil falar com propriedade sobre o comportamento das mulheres, mas na cultura dos homens brasileiros o sexo está por toda a parte, como o ar. Os homens falam sobre isso, riem disso e (suponho que) pensam nisso obsessivamente. Há exceções, mas a regra é uma exibição mais ou menos orgulhosa da própria libido, com detalhes que variam com o bom gosto de quem fala e com o entusiasmo da audiência. Nesse assunto, aliás, o silêncio não é necessariamente sinal de sanidade. Já fui surpreendido por tipos que abrem a boca uma vez por ano para se revelarem tarados de hospício. Qualquer que seja o estilo ou a personalidade do sujeito, a libido está lá. Ela pode virar piada, cantada ou ser reprimida na forma de trabalho, poesia ou silêncio. Mas a minha impressão é que se trata de um motorzinho que fica vibrando logo abaixo da nossa consciência, permanentemente. É uma fonte de energia e de alegria. Ou um peso desgraçado, a depender das circunstâncias. Aprender a lidar com a pulsão do desejo é trabalho para a vida inteira. A meta - me parece - é encontrar o equilíbrio (precário) entre a enormidade do que se quer e a frugalidade do que é existencialmente possível. E não se trata de uma questão moral. Viver em sociedade exige reprimir impulsos. Ou enlouquecer. É um problema de ordem prática. Você, leitor, não pode dizer tudo que passa pela sua cabeça quando a moça da recepção se inclina sobre o balcão. É tanto uma questão de educação quanto de sobrevivência social. E você, leitora, seria imprudente se revelasse em voz alta as fantasias sexuais inspiradas pelo jovem motoqueiro do escritório com cara de mau. Freud disse que sem repressão não há civilização. Ele obviamente não falava apenas de sexo, mas a frase ainda se aplica. Minha geração acreditava ser possível acabar com a repressão. Todo mundo lia Wilhelm Reich e todo mundo achava que o capitalismo havia nos encarcerado em armaduras musculares (e morais) que impediam a nossa felicidade. O nosso orgasmo, mais precisamente. Era preciso derrubar as cercas mentais e fazer a revolução dos costumes. Junto com a revolução socialista, de preferência. Reich ficaria surpreso se visse tudo que aconteceu desde a sua morte, em 1957. A revolução sexual foi tão bem sucedida quanto o rock and roll, mas disso não surgiu um "novo homem". Tampouco foram abolidos os limites que cerceiam a sexualidade e o comportamento. Embora existam minorias que vivem em grande liberdade, para a vasta maioria a revolução sexual apenas alargou a fronteira do possível. Os adolescentes de hoje fazem coisas que eu não podia (dormir com as garotas na casa delas, por exemplo), mas continuam submetidos a restrições sociais. É tarefa de cada geração empurrar a cerca um pouco mais para lá. Quanto maior o espaço, menor a infelicidade. A propósito disso, tenho um amigo que viajou à Sibéria, na Rússia, e foi recebido na estação de trem por uma mulher que ele não conhecia. Linda. Era amiga de umas pessoas que ele havia conhecido dias antes, em Moscou. Ela o levou para a casa e, sem muitos preâmbulos, terminaram na cama. A moça era casada, mas isso, aparentemente, não constituía um problema. Fidelidade parece ser lá uma exigência menor do que é aqui. Provavelmente tem relação com religião (ou a ausência dela) e ideologia. De qualquer forma, o espaço para a libido é maior quando as pessoas não se importam tanto com o que fazem os parceiros. Questão de arranjos sociais. Acabo de ler um livro sobre o festival de Woodstock (Aconteceu em Woodstock, de Elliot Tiber), sobre o festival de rock que ocorreu nas proximidades de Nova York em 1969. Movidas a drogas, música e ideologia hippie de paz e amor, as pessoas organizaram uma espécie de Sodoma e Gomorra a céu aberto. Sexo livre, sexo grupal, sexo homossexual, sexo tântrico, sexo público, sexo, sexo, sexo. Isso faz 40 anos e parece que ninguém saiu ferido. Quanto mais espaço para o desejo, menos conflito. O que jamais será abolido, eu suponho, é o limite do outro: se ele não quer, o que se pode fazer? É difícil imaginar um mundo em que todo desejo seja correspondido. Ou que o ato de entregar-se seja tão banal que as pessoas possam praticá-lo sem restrições, por gentileza, como quem dá um tapinha nas costas. Imagino que sempre vá existir um mercado do desejo em que algumas pessoas serão muito procuradas (por belas e sensuais ou poderosas) e outras estarão oferecendo sua atenção a um número bem menor de interessados. É injusto, mas é assim. O desejo é um sonho incansável que mora dentro de nós. O outro nos dá o limite da realidade. No ano passado, no País Basco, eu conheci uma enfermeira de UTI. Ela tinha 50 anos e cuidava de pacientes terminais há duas décadas. De todas as coisas que ela me contou sobre o seu trabalho, me lembro especialmente de uma delas: mesmo os homens velhos e doentes ainda eram capazes de bulinar, com as palavras e com as mãos. A enfermeira me disse que ria com gentileza das cantadas dos velhinhos e contava até três quando um deles punha a mão na bunda dela. Encenava um jogo de sedução que dava aos anciãos encurralados um pouco de alegria e esperança. Ela acreditava que lidar com o desejo dos pacientes, assim como lidar com as suas dores, era parte do seu trabalho. "O tesão só termina com a morte", ela me disse. Eu acredito. *Clamor do Sexo é o título de um filme de 1961 que precisa ser visto. Ele mostra como era o tempo em que os jovens estavam proibidos de dar vazão aos seus impulsos sexuais. Assista.
IVAN MARTINS Editor-executivo de ÉPOCA

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